07 julho 2009


América Latina: ¿un continente agnóstico?
 
Por: Adrián Sotelo
 
Em artigo recente, titulado “América Latina, um continente sem teoria” (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15943), José Luis Fiori defende que “não existe mais uma teoria capaz de ler e interpretar a história do continente, e fundamentar uma estratégia coerente de construção do futuro.” Em sua argumentação, Fiori faz um rápido repasso da teoria liberal, depois identifica três correntes do pensamento latino-americano imersas na chama teoria da dependência para, por fim, sustentar sua tese a partir da conversão ao neoliberalismo dos principais pensadores e intelectuais de uma daquelas correntes encabeçada pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso e sua escola da dependência.
Num ato em que não fica claro se é truque ou má-fé, o professor Fiori descobre que “América Latina carece de teoria”, ou seja, de um pensamento próprio no qual se apoiar para pensar, entender e analisar a inserção do continente no concerto internacional. Assim, extingue com um simples “canetaço” toda a tradição intelectual latino-americana construída nos últimos oitenta anos, e procura nos informar que existiria um “apagão mental” que deixou nas trevas a compreensão teórica e crítica do nosso continente latino-americano. Para isso nos lembra o óbvio: que historicamente a teoria liberal (agora neoliberal, podemos acrescentar) nunca construiu – nem se interessou em fazê-lo – um pensamento próprio sobre a América Latina, simplesmente porque não necessitava e pelo fato de que bastava sua própria dominação econômica, política e militar para impor sua visão de mundo de acordo com os postulados e interesses imperialistas. É evidente que Fiori tem toda razão: desde a colônia, passando pela independência política de nossos países latino-americanos e a formação dos seus Estados nacionais, até a conformação em modernos sistemas econômicos capitalistas, dependentes, subdesenvolvidos e atrasados até hoje, os liberais de toda espécie – da direita, ultra-direita, ou até as vertentes social-democratas de moda – cumpriram a função de legitimar e justificar as relações de dominação econômicas e políticas entre o chamado “centro”, isto é, o imperialismo, e os países da periferia subordinados estruturalmente, ou seja, os países dependentes.   
Não é preciso ser muito “letrado” para entender que o melhor tratado ultra-liberal que consagra essa “amnésia epistemológica” com evidentes traços políticos está representado pelo livro do estadunidense Walt Whitman Rostow[1], cujo subtítulo, por certo, é significatico: “um manifesto anticomunista”. O objetivo fundamental desse livro (como o de todos liberais) é o de justificar teórica e ideologicamente a dominação que exerce o imperialismo estadunidense sobre os países do (mal) chamado “terceiro mundo” e da América Latina particularmente, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, com uma ambição estratégica: ofuscar o esforço e o significado histórico que para os povos da humanidade representou a façanha da Revolução Cubana, que rompeu com o “paradigma” do desenvolvimento capitalista imposto pelas potências hegemônicas e pela própria CEPAL. No livro de Rostow a história do desenvolvimento em geral é uma sucessão e repetição de cinco etapas que forçosamente todos os países têm que recorrer para “alcançar” seu desenvolvimento.[2]    
É óbvio que o “modelo” ideal de economia e sociedade que está detrás das formulações liberais e reacionárias em relação ao desenvolvimento capitalista é o representado pelos Estados Unidos e seu american way of life, assim como por alguns países imperialistas como Inglaterra ou França, no qual os países subdesenvolvidos e, em particular, os países da América Latina têm necessariamente que se enquadrar. Toda a economia neoclássica conservadora, em diferentes níveis de abstração metodológica, repete este esquema linear, idealista, descritivo e a-histórico do desenvolvimento, da mesma forma que o faz a sociologia funcionalista que floresceu na Europa e nos Estados Unidos e que foi utilizada como marco teórico na América Latina por autores como Gino Germani, para dar um exemplo.[3]
Para “sustentar” sua afirmação de que América Latina é um continente “sem teoria” (ou seja, um “continente agnóstico”), Fiori identifica três correntes ou vertentes da teoria da dependência que, supostamente, surgiram tanto do “desencanto” do “modelo” de industrialização por substituição de importações pregado pela CEPAL como “via de desenvolvimento”, quanto da crítica às teses que a partir da III Internacional sob hegemonia de Moscou – e depois da Segunda Guerra Mundial – levantaram os Partidos Comunistas latino-americanos, teses estas sustentadas numa caracterização da América Latina a partir da articulação dos modos de produção e de uma aliança estratégica anti-imperialista das “burguesias preventivas” com as forças populares e progressistas que consolidariam o socialismo.[4] Como se sabe, esta estratégia foi fulminada após o golpe militar de 1973 em Chile, que depôs o governo constitucional da Unidad Popular e fortaleceu o ciclo das ditaduras militares na América Latina, o que, por sua vez, contribuiu para acelerar e difundir o “apagão mental” referido por Fiori.
As críticas não se fizeram esperar e autores como Ruy Mauro Marini, criador da vertente marxista da teoria da dependência junto com outros como Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, caracterizam-nas de “endogenistas” devido ao predomínio que este tipo de análise outorga aos “fatores internos” na determinação do subdesenvolvimento e do atraso, tais como a acumulação originária do capital, as estruturas de classe, a natureza do modo de produção ou a dinâmica dos mercados internos, colocando o mercado mundial e a divisão internacional do trabalho como “fatores secundários e externos”.[5]
Outro autor que se realizou a crítica ao endogenismo e às teses da suposta existência de feudalismo na América Latina foi André Gunder Frank, que em obras fundamentais demonstrou a continuidade do desenvolvimento capitalista na América Latina desde a expansão colonial das potências ibéricas.[6] Daí sua fórmula de desenvolvimento (capitalista) do subdesenvolvimento (também capitalista).
Surgidas ao calor dos acontecimentos históricos – como o triunfo da Revolução Cubana em janeiro de 1959, a crise capitalista e a sucessão de golpes militares que se estenderam ao longo das décadas de 1960 e 1970 na América Latina –, as três vertentes da dependência que identifica Fiori – e que para ele representa “a última tentativa de teorização latino-americana do século XX” – são: a) a marxista, que segundo ele, considerava que o imperialismo e o desenvolvimento capitalista dos países centrais “impediam” o desenvolvimento do capitalismo dependente, tese esta que é completamente falsa em relação aos autores marxistas da dependência; b) a “cepalina”, que propunha a industrialização por substituição de importações, a expansão dos mercados internos e a realização de reformas estruturais para fortalecer o desenvolvimento; e, por último, c) a “cepalino-marxista”, comandada pelo sociólogo e agora ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso[7], e que Fiori considera ser a que “teve vida mais longa e efeitos mais ‘surpreendentes’ devido a três razões fundamentais: primeiro, porque defendia a viabilidade do capitalismo latino-americano; segundo, porque defendia uma estratégia de desenvolvimento ‘dependente e associado’ com os países centrais; e terceiro, porque saíram desta corrente alguns dos principais líderes políticos e intelectuais da ‘restauração neoliberal’ dos anos 90”, como o próprio FHC, e também Luiz Carlos Bresser Pereira e Guido Mantega, atual Ministro da Fazenda no Brasil do governo lulista.
É preciso esclarecer que tanto Bresser Pereira como Mantega mantêm a mesma opinião que Fiori: o primeiro quando fala de “nova dependência” e de “social-desenvolvimentismo”, e o segundo quando se enquadra em autores que, diz, pertencem à “nova esquerda” dos anos 1960 e 1970. O substancial nos três (Bresser Pereira, Mantega e Fiori) radica em que atribuem indevidamente a esta corrente de pensamento a paternidade da teoria da dependência, escondendo que esta representa somente uma de suas vertentes, ao lado de uma teoria marxista da dependência, que transcende o universo teórico-metodológico do reformismo.[8]
Num importante ensaio[9], Marini critica e desvenda as teses sociologistas e social-demócratas de Fernando Henrique Cardoso e José Serra – e, portanto, critica igualmente as idéias do grupo que ambos representam – e as caracteriza como um “neo-desenvimentismo vergonhoso” (p. 103) que, no âmbito brasileiro, filtra as teses da “interdependência” e apresenta o Brasil frente a um desenvolvimento ao estilo estadunidense e europeu que o coloca no mesmo nível dos países desenvolvidos, apagando todas as diferenças estruturais em relação à dependência (econômica, financeira, científica e tecnológica). Por isso não é nada estranho que o Fiori capte o momento predominante do “apagão mental” que, segundo ele, ocorre na América Latina com o abandono do “latino-americanismo” por parte de um dos mais proeminentes representantes dessa corrente de pensamento: Luiz Carlos Bresser Pereira – que, por certo, caracterizou o golpe militar de 1964 de “revolução de 64”[10] –, quando este aderiu ao liberalismo cru.
O que ocorre, e isso oculta Fiori, é que efetivamente se apagou e deixou de existir essa corrente weberiana e reformista da dependência a partir da conversão e práxis neoliberal de Cardoso como presidente do Brasil[11] – o que se deu junto a outras correntes como as endogenistas, que desapareceram com a extinção dos partidos comunistas e da União Soviética. Mas de nenhuma forma se esgotaram as teorias latino-americanas, como pensa Fiori. Pelo contrário, estas foram vítimas do neoliberalismo e do pensamento único, sobretudo nas décadas dos oitenta e noventa do século passado, quando foram impostos os marcos teórico-ideológicos das formulações eurocêntricas e neoliberais sustentadas nas reformas do Estado e do mercado. Na atualidade assistimos a um grande esforço de ressurreição do marxismo, do pensamento crítico e da teoria da dependência frente à crise global do capitalismo e de suas principais formas dominantes de pensamento. O objetivo consiste em renovar nosso pensamento, reformular categorias e conceitos e, paralelamente, buscar caminhos e estratégias de transição que transcendam radicalmente a ordem civilizatória do capitalismo em crise.
Por outro lado, a vertente marxista da dependência nunca postulou, como afirma Fiori recordando e assumindo as teses de Cardoso, que o desenvolvimento capitalista ficaria bloqueado devido à existência do imperialismo e de sua dinâmica de desenvolvimento nos centros. Esta é uma má-interpretação de todo um debate que ocorrei na América latina no curso das décadas de 1960 e 1970. Cardoso acusa a teoria da dependência, em particular a vertente marxista, de ser portadora de “teses estagnacionistas”, mas o próprio Marini se encarregou em várias ocasiões de esclarecer o tema e enfatizar que a teoria da dependência nunca apontou a uma concepção estagnacionista do desenvolvimento capitalista na América Latina e, em geral, nos países dependentes. Pelo contrário, demonstrou que foram precisamente autores como Celso Furtado e o próprio Cardoso, assim como o chileno Aníbal Pinto, os que assumiram as teses do estancamento econômico latino-americano, pedindo a gritos a intervenção do Estado para salvar o sistema. Por exemplo, o enfoque estruturalista de Celso Furtado lhe permite inferir uma tendência ao estancamento econômico da América Latina devido, entre outros fatores, ao estrangulamento do crescimento que provocam tanto a propensão à concentração do progresso técnico nas unidades produtivas mais eficientes e rentáveis, como a aguda concentração de renda. É assim que Furtado expressa: “No caso mais geral, o declínio na eficiência econômica provoca diretamente a estagnação econômica”[12]; e mais adiante conclui: “Neste sentido, pode-se atribuir ao problema da estagnação econômica um caráter estrutural”[13].  
Em contraste com esta posição, na obra de Marini sobram passagens nas quais é possível inferir que, para ele, o capitalismo se desenvolve (não se estanca) em conjunção com seu caráter dependente do capitalismo mundial. Por exemplo, quando afirma: “A economia exportadora é, pois, algo mais que o produto de uma economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica as relações de exploração em que se baseia, e cria um ciclo do capital que tende a reproduzir em escala ampliada a dependência em que se encontra frente à economia internacional”.[14]
A economia industrial latino-americana emerge – sobre as bases sócio-econômicas e políticas da velha economia exportadora que se desenvolveu entre 1850 e 1930-50, dependendo dos países – no período da industrialização por substituição de importações para o mercado interno, o que se deu entre 1930-1950 e finais da década de 1970, aprofundando o capitalismo, o atraso e a dependência.[15] Portanto, concluímos que as teses do Marini são exatamente o inverso das que postulam a estagnação do capitalismo e que, pelo contrário, demonstram claramente que o desenvolvimento do modo de produção capitalista universal com eixo nos centros e comandados pelo imperialismo estadunidense gera desenvolvimento capitalista nas periferias, mas este é dependente, aprofundando os fenômenos próprios da dependência, do subdesenvolvimento e do atraso para os países e sua população. Esta perspectiva também vai contra os postulados da economia neoclássica e do neo-estruturalismo, como o de Fiori[16], e também contra as ilusões do desenvolvimento tecnológico, da aplicação da ciência aos processos produtivos e à inversão estrangeira direta que historicamente não fez mais que acelerar as transferências de valor e de mais-valia (numa espécie de afirmação e aprofundamento da troca-desigual) para as economias do capitalismo desenvolvido e engrossar o endividamento externo da região.[17]
Estas reflexões eram necessárias para mostrar que o tema da dependência não está acabado. Pelo contrário, é preciso desenvolver a teoria, criando novas categorias e conceitos analíticos sobre a bas de recuperação do nosso extenso e rico pensamento teórico e crítico latino-americano. América Latina tem povos e intelectuais comprometidos com a tarefa de nutrir um pensamento próprio e autônomo em função da crítica de todas as teorias dominantes na ordem capitalista existente com a ambição de transcendê-lo.
Finalmente, frente ao anúncio soberano de Fiori em relação ao fato de que “no caso dos intelectuais progressistas do continente, é uma má notícia saber que não existe mais uma teoria capaz de ler e interpretar a história do continente, e fundamentar uma estratégia coerente de construção do futuro”, a boa notícia consiste em comunicar que os povos, as comunidades, os intelectuais progressistas e de esquerda e os movimentos populares estão realizando a tarefa de construir suas próprias teorias, com forte raiz no marxismo e no pensamento crítico, para forjar suas próprias concepções sobre a transformação social e a transição da América Latina num contexto de crise estrutural e civilizatória do modo de produção capitalista e de seus marcos teóricos e ideológicos construídos pelo capitalismo e pelo imperialismo nos últimos 200 anos. 
 
Todos os direitos a Adrián Sotelo
 

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